Se há uma unanimidade na comunidade de canais de vendas de tecnologia, em termos de credibilidade, profissionalismo e ética, essa pessoa é Jorge Sukarie. A frente da Brasoftware, que completou 31 anos de operação e acabou de atingir o marco histórico de receita anual de R$ 1 bilhão, bem como no corpo diretivo de entidades como a ABES (Associação Brasileira de Empresas de Software), Sukarie, escreveu a história do ecossistema de tecnologia no Brasil. Em uma conversa entre amigos, pois o meu primeiro contato com ele ocorreu há mais de 21 anos, quando o atendia como executivo da Microsoft, pudemos conversar sobre a evolução dos canais de vendas e distribuição do Brasil, como também sobre o que esperar e como se preparar para os movimentos disruptivos dos próximos anos, não só ao que tange a tecnologia, mas especialmente como atrair, desenvolver e reter clientes, inclusive pelo modelo de marketplace, por exemplo. Segundo ele, "hoje meu desafio não é mais ir até o cliente e vender o contrato, mas sim garantir que ele consuma o que adquiriu”. Vamos a ela:
Pedro Luiz Roccato: considerando sua rica experiência na gestão de um dos maiores e mais respeitados canais indiretos de vendas de tecnologia da América Latina, com mais de 35 anos de experiência profissional, sendo 31 pela Brasoftware, quais os aprendizados que você gostaria de compartilhar com o ecossistema como um todo?
Jorge Sukarie: nós começamos em meados da década de 80 quando o mercado de software era muito incipiente no Brasil, quando estavam começando a aparecer os primeiros PCs (computadores pessoais). Eu comecei nessa época, 84, 85, quando os PCs incompatíveis começaram a aparecer, como Microtec e Itautec, em um momento onde existiam os grandes distribuidores de software, como Intercorp e Compucenter. Eu estava na Brasoft, que também distribuía software. Neste momento houve problemas na criação dos canais indiretos de vendas (revendedores), pois os distribuidores vendiam diretamente para os clientes, mas eles não tinham braço para atender todo mundo, o que possibilitou o surgimento dos canais indiretos de venda de software.
Roccato: neste momento o ticket médio era alto, não era?
Jorge Sukarie: sim. Eram valores altos, pois vendíamos pouco software. Cada software custava oito mil dólares na época, porque vendíamos poucas caixinhas por ano. Então, todo mundo recebia o software no computador, achava que estava licenciado, e tivemos que fazer um trabalho muito forte de orientar usuário de que ele precisava adquirir a licença do software. Ele tinha comprado o computador. Apesar dele ter pago o computador e ter todo o software instalado, ele também precisava pagar pelas licenças. Além disso, como os distribuidores estavam concentrados em São Paulo e no Rio de Janeiro e os clientes espalhados por todo o Brasil, começaram a surgir oportunidades de negócios, o que levou os distribuidores e fabricantes a captarem revendedores. Ao mesmo tempo, também surgiram os conflitos entre canais, venda direta com indireta, que é o que você está acostumado e é um desafio que a gente tem até hoje, exigindo dos fabricantes alinhamento. Como grande ensinamento, eu diria que o foco é o caminho para a perseverança, porque o desafios são enormes, para você conseguir gerir uma empresa, administrar pessoas, conseguir superar burocracia, e principalmente, os desafios de conseguir conquistar clientes. As chances de não dar certo, são muito grandes. Eu atribuo ao foco a uma grande parcela de sucesso da Brasoftware, o que nos levou a superar a barreira de um bilhão de faturamento no final de 2018.
Roccato: Parabéns!
Jorge Sukarie: em mais de 30 anos de operação, muitas empresas não estão mais no mercado, como: Compucenter, Softcorp, CS Compusoftware, Allen Informática e outras. Eu acho que tem tudo a ver com a ética que a gente procurou imprimir no negócio, na relação com o fornecedor, na relação com o funcionário, na relação com os próprios clientes. Eu tenho clientes com contratos assinados há 30 anos. O cliente já trocou o diretor, já trocou CEO e continua nosso cliente. O mesmo acontece com os fornecedores. No caso da Microsoft, fomos reconhecidos como o parceiro mais antigo da região.
Roccato: na linha de software, na trajetória de 31 anos da Brasoftware, qual foi o fato mais disruptivo? Foi a venda de software por subscription, por assinatura e não mais via caixinhas com licença permanente?
Jorge Sukarie: Não, eu acho que todos tiveram a seu tempo e a sua importância. Eu tenho dificuldade em te dizer. Acho que sempre a dificuldade é o que você está vivendo hoje. A gente sempre tem a memória curta e tende a realçar o desafio atual. Se a gente for resgatar, pelo menos os grandes marcos, começamos vendendo caixinha de software. Então eu colocava as caixas no meu carro e levava até um grande cliente. No caso do Bradesco, por exemplo, já cheguei a levar 100 caixas de Wordstar ou Lotus, que eu levei no meu carro, e eles, cada vez que me viam chegando, ficavam desesperados. “Jorge, onde é que eu vou botar essas caixas?”. 100 licenças, 100 caixinhas. Depois surgiram as licenças sem as caixinhas, via contratos de licenciamento, com entrega apenas de um CD/DVD, independentemente do número de licenças.
Roccato: e as grandes feiras, como a Fenasoft, que levava as pessoas a viajarem milhares de quilômetros para comprar produtos?
Jorge Sukarie: Isso mesmo, pois não existiam lojas perto dele. E ai quando começaram a surgir as lojas. Nós chegamos a ter duas lojas, em 1994 no Shopping Ibirapuera e depois no Morumbi Shopping. Nesta época o Pedro Melo abriu a megastore Plug&Use e aí começaram também a surgir os magazines, o que ocasionou a perda de atratividade das grandes feiras.
Roccato: e qual foi a próxima onda?
Jorge Sukarie: em meados da década de 2000, entre 2005 e 2010, começamos a ter, não só as equipes verticalizadas, mas a busca por soluções verticalizadas baseadas nas linhas de negócio de cada uma das verticais. E dentro de cada vertical, várias linhas diferentes. Você olha para manufatura, ou automobilística, farmacêutica, e por aí vai. O account manager tinham que ter o conhecimento daquele mercado, de telecomunicações, por exemplo, quais são os desafios, os marco regulatórios para ver como é que deveríamos endereçar as oportunidades de negócios.
Roccato: Inclusive a sazonalidade de cada mercado, correto?
Jorge Sukarie: exatamente. Cada um tem a sua sazonalidade, como também um ciclo de venda diferente, uma remuneração do profissional de vendas diferente, motivando-o a desenvolver as vendas com maior ticket, considerando que demoram mais para acontecer. Em outros mercados as vendas são mais curtas, mas são menores também. Então, você tinha que identificar essas diferenças e poder colocar o pessoal para aprender dentro dessa linha. Em 2009 começamos os movimentos de ofertas na nuvem (cloud computing), uma vez que os links de internet evoluíram, mas não sabíamos onde este mercado iria chegar. Neste ano, me lembro de ter participado de um evento da Microsoft com o Steve Balmer, que falou que a Microsoft aumentaria o investimento na área. Eu não vou lembrar agora dos números exatos, mas seria algo em torno dez bilhões de dólares de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e sete bilhões iriam para cloud. Neste momento comecei a olhar com atenção e a investir também.
Roccato: e o que aconteceu?
Jorge Sukarie: menos de um ano a gente botou no ar. Mas foi muito importante para empresa incorporar esse espírito que a gente tem hoje de cloud. A saída do produto foi ruim inicialmente, mas depois foi evoluindo para o Officer 365 e a discussão de cloud e a tecnologia também seguiu evoluindo cada vez mais, inclusive com um modelo de licenciamento diferente, até o modelo que a gente está vivendo hoje, com subscription.
Roccato: neste cenário, qual foi o reflexo no fluxo de caixa na companhia, como também o impacto no processo de gestão de remuneração variável da força de vendas, passando de venda de licenças, onde o investimento do cliente inicial é alto para a diluição de pagamentos no modelo as a service?
Jorge Sukarie: eu lembro que eu assisti em 2011 uma apresentação de um consultor nos Estados Unidos e ele explicou uma coisa que me marcou muito e depois eu sempre usei como conceito, sobre o que acontece com a receita da empresa no momento de transição. Você sai de um momento onde a empresa está estável, está consolidada no momento de canal, e a receita dela tende a cair durante um período porque você deixa de vender no modelo de CAPEX, enquanto você está se estruturando pra vender cloud. Você começa vendendo movimento de receita recorrente, até você construir uma receita recorrente e voltar para o patamar que você estava, leva um determinado tempo. Neste momento de transição você cria um um GAP de receita. Por outro lado, nesse mesmo momento, você vai ter que fazer investimentos para migrar a sua companhia para um modelo de cloud, até que você chega em uma hora que o investimento vai diminuindo, porque a empresa já está estruturada, e esses dois pontos vão se encontrar em determinado momento. O grande desafio é você fazer com que esse GAP seja menor.
Roccato: e quanto aos impactos das mudanças com a equipe? você teve muitas perdas de pessoal?
Jorge Sukarie: a adaptação foi super boa, a transição também. Logicamente demorou um tempo e a gente vem capacitando e algumas pessoas acabam não se adaptando.
Roccato: você quer dizer que houve um processo natural de transição?
Jorge Sukarie: sim, não perdemos. Se eu disser que tivemos que trocar toda equipe porque não conseguiram se adequar, eu estaria mentindo. Hoje a gente está em um modelo onde continuamos representando os mesmos parceiros. Eu não fui obrigado a trocar os players para continuar atendendo nossos clientes. Como a gente trabalha sempre com os grandes players, eles continuam se dando bem. Veja o caso da Microsoft que anunciou no final do ano passado um crescimento de 29% da receita do primeiro quarter fiscal e as ações dispararam. A Microsoft que era um grande ponto de interrogação, conseguiu levar sua oferta para nuvem com sucesso. Neste momento acredito que deveremos passar por outra transição para um mundo de soluções de negócios. Hoje nós estamos vivendo uma era de consumo. Eu já não vendo mais licença, hoje eu tenho que me preocupar com o consumo do que vendo. Antes eu me preocupava com o cliente que estava comprando licenças para garantir o meu sucesso no futuro, hoje eu tenho que garantir que o meu cliente está consumindo o que comprou.
Roccato: você quer dizer que não basta vender serviços e soluções, mas temos que garantir que o cliente está, de fato fazendo uso do que comprou?
Jorge Sukarie: exatamente. Hoje eu só consigo convencer o cliente a consumir se eu levar uma solução de negócio pra ele. Temos procurado abrir várias frentes onde identificamos maneiras de ajudar os nossos clientes a consumirem mais. Vou te dar um exemplo, a gente fez há dois anos um programa. Na verdade é um novo programa de parceiros que criamos. Nós já tínhamos dois, um para os nossos parceiros que nos ajudam a prestar serviço junto aos clientes, ou seja, que atendem nossos clientes por meio da disponibilidade de serviços. O segundo, que acredito que até seja mais duradouro daqui pra frente e tende a crescer mais nesse momento, compreende parceiros que são grandes consumidores de cloud. Então a gente tem fechado parcerias com empresas que tem soluções notoriamente reconhecidas e destacadas no mercado, e que a gente está trazendo pro nosso ambiente de negócios. Um exemplo deste modelo é a Digital Pages, do Youssef. Fechamos parceria com eles, que figura como um de nossos provedores de sistemas de conteúdo.
Roccato: neste caso, você criou um catálogo de soluções verticalizadas?
Jorge Sukarie: já temos um catálogo, mas nosso desafio agora é criar um marketplace. Neste modelo todos acabam ganhando. Hoje meu desafio não é mais ir até o cliente e vender o contrato. É garantir que ele vai usar. Então, se eu tiver uma solução você não vai querer comprar de forma natural.
Roccato: se o profissional de vendas força uma venda de uma solução de software as a service que ele descobre, depois de contratar, que não precisa ou que desconhece como utilizá-la de fato, isso não só causa uma insatisfação do cliente, como também o levará a rescindir, ou ainda, a reduzir aquela funcionalidade da contratação anterior. Estou correto?
Jorge Sukarie: sim. Outra frente, também nessa mesma linha de consumo, que começou no em 2017, foi da da Brasofware Innovation. Quando começamos tínhamos duas pessoas, hoje são mais de quarenta e cinco. Por ela selecionamos as tecnologias disruptivas, como inteligência artificial, serviços cognitivos e similares, e montamos pequenas soluções para atender necessidades dos nossos clientes.
Roccato: e no caso de segmentação da equipe para desenvolvimento verticalizado, há o vínculo de uma conta efetivamente nomeada a um account manager?
Jorge Sukarie: há grupos de atendimento, como o corporativo que é o responsável pelo atendimento de empresas de médio e grande porte, onde a equipe é verticalizada. No caso de educação, apesar de ser uma vertical, possui uma equipe específica, separada do corporativo.
Roccato: as equipes são de inside ou field sales? E como você distribui a carteira em termos de número de contas por profissional de vendas?
Jorge Sukarie: os dois. Depende do perfil do cliente. Temos caso de um para vinte e cinco, um para cinquenta, ou ainda setenta e cinco clientes por profissional. Temos até um para 125 clientes, que tem um perfil mais reativo.
Roccato: e o equilíbrio da conta entre farmer e hunter, como é que você tem tratado o desenvolvimento comercial?
Jorge Sukarie: temos muita dificuldade de fazer o trabalho de hunter nos grupos de grandes contas. Porque eu já tenho muitos clientes. A gente tem muitas ofertas que não conseguimos cobrir nessas contas. Eu já tenho, dentro de cada linha uma oferta de cross-seling, com novos serviços pra oferecer para cada um desses clientes, o que me gera muita dificuldade em fazer um trabalho de hunter. Há alguns meses iniciamos uma nova experiência de contratar algumas pessoas sem uma carteira formada, sendo o seu objetivo captar novos clientes, mas ainda não obtivemos retorno.
Roccato: considerando 2019 e próximos anos, há uma série de movimentos acontecendo, como o marketplace e outros, que já afetaram e ou irão afetar talvez de maneira mais intensa o seu modus operandi. Quais seriam os pontos de demandariam maior atenção nos próximos anos?
Jorge Sukarie: você colocou bem. A gente já está passando por um processo que tem exigindo muito do canal, porque a gente já não consegue mais operar no modelo que vínhamos operando há alguns anos atrás. Acho que esse é um alerta que todo mundo já percebeu, o que não necessita destacarmos um caso ou outro, mas uma coisa que eu tenho falado muito, é que a gente vai ver uma evolução tecnológica nos próximos anos, três a cinco anos, muito maior do que a gente talvez tenha visto nos últimos trinta anos de existência da Brasoftware. Isso vai causar a chacoalhada no canal, para que a gente possa entender a necessidade do cliente, entender a demanda de mercado, conseguir identificar os players, porque de novo, acho que quando falamos em evolução tecnológica, colocamos em risco quem serão os players de sucesso. Será que os parceiros com que eu estou trabalhando hoje? Eles irão ser os parceiros vencedores daqui três, cinco anos? Não sei. Assim, temos que nos preocupar em analisar o ecossistema e tomar decisões rápidas pra ajustar o nosso negócio nesse novo mundo que a gente vai viver, cada vez mais desafiador para o canal de uma maneira geral. Portanto, não podemos ficar em nossa zona de conforto. Por exemplo, vamos imaginar que eu esteja conseguindo fazer a transição de vendas para a nuvem, mas os meus clientes estão satisfeitos? Nós sempre nos preocupamos em sermos pioneiros, tomar iniciativas e fazer as mudanças. Porém, à partir de agora, isso se tornará cada vez mais importante, em função da evolução tecnológica que nós vveremos rapidamente acontecer.
Roccato: para finalizarmos, você sempre participou de conselhos e comitês nacionais e internacionais de canais indiretos de vendas, que permitem essa troca de experiências e vivências. Se considerarmos os perfis dos canais do Brasil em comparação com outros países, estágio de evolução, etc, o que caberia destacar?
Jorge Sukarie: eu sempre gostei muito de participar desses conselhos, de ter interação. Para que isso aconteça, tive que sair da linha de frente da Brasoftware, deixando a operação com a Adenilde, Eduardo, Amanda e equipe, permitindo que eu foque no que é estratégico. Eu participo de vários conselhos como você colocou, como o da Microsoft, por exemplo, desde 2004, criado para parceiros globais. Há casos como da ABES (Associação Brasileira de Empresas de Software), por exemplo, que lidero, mas também outras entidades que contribuo. Veja o caso do marco regulatório da internet, que não falamos sobre isso até agora em nossa conversa, mas ao longo desses 30 anos participei muito ativamente, como entidade, bem como para definição da tributação e de marcos regulatórios importantes e ações de fomento pro setor de software no Brasil. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, temos oportunidade de ver antecipadamente vários movimentos, mas eu vejo que, em alguns casos, temos servindo como referência.
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